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Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto


Dia de Luta Pela Descriminalização do Aborto


O aborto é a interrupção da gravidez que pode ser espontânea ou induzida. A prática do aborto induzido é proibida e considerada crime pelo código penal brasileiro, exceto em casos específicos.


Há mais de 80 anos mulheres tem o direito de realizar aborto gratuito através do SUS em casos onde há risco de vida para a gestante ou quando a gravidez é resultante de estupro e mais recentemente (2012), em casos de feto anencefálico (quando há ausência ou má formação do sistema cerebral do feto). Se tratando de gravidez que ponha em risco a vida da mulher ou feto anencefálico não a limite de semanas de gestação para realizar o aborto. Em caso de abuso sexual o tempo limite são 20 semanas de gestação, ou 22 caso o feto pese menos de 500 gramas.

Aproximadamente 80% das vítimas de violência sexual são mulheres e mais de 50% TEM MENOS DE 13 ANOS. Segundo dados de 2018 da OMS, a gravidez na adolescência é um grave problema de saúde pública no Brasil. Enquanto a taxa mundial é estimada em 46 nascimentos para cada mil meninas entre 15 e 19 anos, no Brasil são 68,4 nascimentos para cada mil jovens. A Organização Mundial da Saúde reconhece o aborto como um serviço de saúde essencial desde 2012.


Mulheres pretas e periféricas tem o risco de morrer multiplicado por 1000. A cada dois dias, uma brasileira periférica morre por aborto inseguro, um problema de saúde pública ligado à criminalização da interrupção da gravidez e à violação dos direitos da mulher. A lei proibitiva não tem impedido que as mulheres abortem, mas tem se mostrado muito eficaz para matar essas mulheres.


Nunca vi uma mulher desejar um aborto: “acordei hoje, tenho certeza que esse cara vai me abandonar em um mês, estou desempregada e já tenho três filhos, mas sei lá estou com muita vontade de engravidar só pra abortar depois”. O que acontece é que essas mulheres estão tão desesperadas por sua situação de vida sofrendo desde a violência doméstica, dificuldades financeiras ao abandono do pai do bebê que uma medida extrema parece ser a única solução.

O aborto só não é seguro para mulheres pobres, visto que mulheres com boas situações econômicas abortam clandestinamente de forma segura. Aborto clandestino não é o mesmo que aborto inseguro. Mulheres morrem quando não tem condições financeiras para arcar com um aborto clandestino seguro. O racismo institucional ainda eleva a chance de pretas morrerem durante o procedimento em 2,5 vezes em relação às brancas.



O recente caso da criança de 10 anos escancarou mais uma vez a perversidade de um sistema fundamentalista que não assiste nem crianças, nem mulheres, mesmo quando isto é previsto em lei. Não bastasse a violência física e emocional que sofreu por anos, ainda é obrigada a ser abusada mais uma vez pelo próprio estado que dificultou, violou seus direitos e sua privacidade vazando informações confidencias sobre o processo. Todos os envolvidos permanecem impunes, mas se engana que o terror tem fim. Nosso novo pesadelo é a Portaria GM nº 2.282, de 27 de agosto, do Ministério de Saúde que pegou o gancho no caso da menina do ES.


Todas as questões relacionadas ao procedimento clínico deveriam ser resolvidas na unidade de saúde, sem necessidade de intervenção judicial ou quaisquer outras medidas que não envolvam a segurança da paciente. A legislação não exige que a mulher apresente provas ou boletim de ocorrência que foi vítima de abuso sexual para realizar o aborto.


Antes de falar sobre a portaria gostaria de rapidamente frisar que a maioria das mulheres se quer denuncia o estupro, gestando, parindo e seguindo suas vidas eternamente machucadas e silenciadas somente para evitar mais uma violência que acontece quando denuncia essa violência. Então se ela tem essa informação de que não é necessário ir até a delegacia para abortar e se dirige ao hospital já são mil barreiras rompidas, mas ao chegar lá são denunciadas pelos profissionais de saúde.


A nova portaria exige dos profissionais de saúde aquilo que já acontecia na prática por desinformação ou criminalização por parte dos agentes de saúde. Ainda que isso esteja em desacordo com o direito a privacidade da paciente e sigilo médico a portaria determina agora que notifiquem às autoridades policiais sobre o recebimento de casos em que há indícios ou a confirmação de violência sexual. Determina também que os profissionais “deverão preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro a serem entregues imediatamente à autoridade policial, tais como fragmentos de embrião ou feto” (artigo 1º, parágrafo único).


Ou seja, uma questão de saúde pública onde o estado deveria assistir a vida de mulheres e crianças torna-se palco da vontade de grupos religiosos no poder que nos relegam a um ciclo de violência sem fim a cada barreira a ser rompida para exercer seu direito ao aborto seguro. A prática de coerção social nas instituições de saúde é uma das formas de impedir a interrupção voluntária da gravidez, mesmo em casos de violência sexual ou risco de vida da pessoa gestante.


No artigo 8º, na segunda fase do procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez, consta: “a equipe médica deverá informar acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, caso a gestante deseje, e essa deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada.” A todo custo tentam nos culpar pela violência sexual e pelo consequente aborto. Devemos ser condenadas e culpadas por não carregar o fruto de uma violência.


Essa portaria reforça ainda mais o medo de ser deslegitimada em seu relato de violência como muitos e muitos casos onde o agressor é o homem branco. Temos um cenário já pavoroso que faz com que as mulheres não busquem atenção medica adequada em casos de violência e recorram a meios inseguros para abortar. Este fato, somado à falta de informação de muitas mulheres sobre seus direitos e os serviços médicos existentes em casos de violência, irão incrementar o número de abortos inseguros e provocar o aumento de morte materna e o agravamento da saúde física e mental das mulheres. Morremos várias vezes. Uma parte morre no estupro, mais um pouco morre ao ser condenada pelo ato que não cometeu. Um corpo sem vida silenciado e sem justiça e morremos várias vezes e de diversas formas.

Apesar de o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) terem se colocado várias vezes contra a denúncia da paciente que provoca o aborto por parte dos médicos e do próprio Ministério da Saúde determinar em norma técnica que “Toda mulher em processo de abortamento, inseguro ou espontâneo, terá direito a acolhimento e tratamento com dignidade no Sistema Único de Saúde (SUS)”, o que se vê nos hospitais públicos e de convênios é a exposição, julgamento e maus tratos. “Diminuiu o número de mulheres que procuram o SUS por complicações de aborto e não é porque o número de abortamentos diminuiu.

É porque os profissionais recebem essa mulher com julgamento, xingamentos, deixam-na sangrando por horas antes de internar e muitas vezes fazem os procedimentos sem anestesia que é ‘para aprender” diz a socióloga integrante da Frente contra a criminalização das mulheres e pela legalização do aborto Dulce Xavier, que há muitos anos acompanha estes casos. “Nós não temos uma política de planejamento reprodutivo no Brasil, faltam preservativos nos postos de saúde, muitos serviços que estão nas mãos de organizações sociais religiosas”.


* * *

Na mesa de madeira em frente à porta de uma sala de audiências no Fórum Criminal de São Paulo, repousa uma lista com os processos a serem julgados naquela tarde. Em alguns minutos, será a vez de Marta* ser absolvida sumariamente ou ir a júri popular e pegar até quatro anos de prisão, como explica a defensora pública Juliana Belloque, que atua a seu favor. A primeira folha do processo diz que Marta "provocou aborto em si mesma" e isso basta para condená-la, já que a prática é crime previsto pelo artigo 124 do Código Penal. Mas, quem seguir lendo os autos, saberá que Marta tinha 37 anos, era mãe solteira de três filhos pequenos (com idades entre 1 e 6 anos), vinha de um histórico de abandono por parte dos pais das crianças (inclusive o da gravidez que interrompeu) e estava desempregada quando, em 2010, em um ato de desespero, comprou um remédio abortivo de uma prostituta por R$ 250, tirados de sua única fonte de sobrevivência - a pensão da filha. Descobrirá também que Marta é pobre, só completou o primeiro grau, e que morava com os filhos em um bairro afastado de São Paulo quando, três dias após introduzir o remédio na vagina (de forma incorreta, já que não tinha a quem pedir orientação), ainda não havia parado de sangrar e de sentir fortes dores, e por isso procurou o pronto-atendimento de um hospital público de seu bairro. O leitor ficará surpreso ou aliviado, dependendo de suas convicções, ao saber que a médica que a recebeu, imediatamente fez a denúncia a Policia Militar, explicando que retirou uma "massa amorfa" de seu útero, "provavelmente" uma placenta resultante de um aborto malsucedido.

"Não existe prova da gravidez, a única coisa é o depoimento desta médica dizendo que retirou uma quantidade grande de massa amorfa que ela avalia como placenta do útero dessa mulher, que chegou com um sangramento no hospital. Enquanto a mulher está hospitalizada essa médica chama a Polícia Militar e, enquanto ela está internada, a PM vai até a casa dela, sem mandato, e apreende um lençol sujo de sangue e um balde. Não tinha feto, medicamento, caixa, nada. Apenas um lençol sujo de sangue e um balde, em uma casa muito pobre. Com isso se instaura o inquérito policial. Quando ela é liberada, é levada até uma delegacia e existe uma confissão extrajudicial ao delegado. Essa mulher nunca é ouvida em juízo para confirmar ou não essa confissão", resume a defensora Juliana.

Marta aceitou assinar uma confissão para obter a suspensão condicional do processo - prevista para penas mínimas de até 1 ano, quando o réu é primário e não responde por outro processo criminal, e que suspende o caso por um período de 2 a 4 anos, desde que o acusado cumpra algumas condições como comparecer periodicamente em juízo para atualizar endereço, justificar ocupação lícita, prestar serviços à comunidade, entre outras - mas ela deixou de cumprir essas condições e o processo seguiu o curso. A defensora explica que pretende mostrar ao juiz que o processo é marcado por violações, como a falta de provas, já que não há feto, o testemunho extraoficial porque ela não chegou a ser ouvida em juízo, a denúncia feita por uma médica que quebrou o sigilo de sua relação com a paciente, às buscas sem mandato, a falta de uma perícia e de um exame de corpo de delito. "As mulheres costumam assinar a confissão porque chegam muito fragilizadas e querem se livrar daquilo o mais rápido possível. Os casos que chegam para nós são bem parecidos: mulheres pobres, sozinhas, com filhos, sem antecedentes criminais, que praticam o aborto inseguro em um momento de desespero e que são denunciadas pelos profissionais que as atendem nos hospitais públicos. Os companheiros não existem, nem aparecem seus nomes nestes processos", diz a defensora.

Fonte do relato de *Marta (fictício) revista Istoé 2013.

Imagens: Internet

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